terça-feira, 29 de julho de 2014

QUALQUER DIA NA METRÓPOLE

A tia o presenteara com o filhote de policial que ele batizou como "Tubarão". O menino brincava de subir mais alto nas mangueiras e goiabeiras. Lá de cima ele viu a cobra verde movendo-se  na grama em direção ao cachorro. Gritou então:

- Corre Tubarão! - acenando com a mão e perdendo o equilíbrio para a queda de uns dois ou três metros.

Zefinha, que catava feijão, ouviu o grito, olhou e viu a queda. Gritou alertando aos outros - "Julinho caiu da mangueira, socorro gente!" e saiu na carreira para acudir. Ele nem notou a queda.  O braço doía muito e estava torto. Percebeu e assustado, gemeu - "Quebrou!!" - quando Zefinha chegou consolando.

Tubarão nem notou a cobra. Estava a salvo e continuava rosnando, agitado, pulando em volta de um garrancho, logo ali, feliz como um filhote de bem com a vida, sem ligar pra mais nada.

- Pode andar? 
- Posso...
-Então levante... Eu ajudo.

A mãe, o pai, a tia estavam chegando e ele resolveu que não ia chorar. Que era um homem aos nove anos e podia aguentar a dor do braço quebrado. Contou da cobra verde... Tubarão... E tudo girou, ficou escuro quando o pai o abraçou para que o tio, puxando o braço quebrado, pusesse o osso no lugar, para  imobilizar com uma tala de madeira e ataduras.

Lembrava aqueles dias enquanto ouvia as bombas, tiros e gritos, sirenes lá embaixo, na praça. Dali podia observar quase tudo, como se estivesse no alto de uma mangueira, sem entender ainda por que a gente sempre estava brigando, dizendo ser em defesa do Brasil. 

Parecia brincadeira: contara até a entrada daquela 
"presidenta", a mais incompetente e enrolada dos 13 presidentes que  haviam dirigido a nação desde o "armistício" da II Guerra, isto é, se o dicionário não estiver errado, "suspensão da briga, sem por fim à guerra". A guerra continuava, picada, espalhada pelo mundo. Um dos milhares de atos estava ali, diante do seu nariz que sentia do fedor da pólvora e gazes.

Era patético ver, ouvir, ler as declarações daquela senhora, que aparecia na televisão apertando a mão de um trabalhador e logo a seguir limpando  a mão (do suór? do pó ou da fuligem? com nojo da aspereza, dos calos?) - daqueles que estavam na "linha de frente da batalha produtiva..."

Um discurso partido, ôco, sem sentido, sem casar com a realidade, brutalizando as leis e ignorando o senso de justiça comum às gentes... Um discurso que parecia coisa de pessoa em estado alterado de consciência... A droga era o Poder, prestígio, grana, roupas e jóias, carros e avião, segurança, viagens internacionais... Vaidade própria dos pobres de espírito.

O mundo aquele da infância estava bem ali na sua cabeça, como um filme ou uma lição distante, amorosa. Era o mesminho. Mas agora representado de forma caótica, longe dos ritmos naturais, longe dos sabores e cheiros agradáveis, diferentes do cheiro de pólvora e gazes. Um mundo onde os gritos, as sirenes e os tiros haviam substituído os murmúrios do vento, dos grilos, das cigarras.

Um mundo onde as palavras haviam perdido o sentido. A fé estava dividida. O dever, o respeito e o mérito sumidos... Passou as mãos nos cabelos brancos e pensou que não sairia à rua naquele dia. Era preferível  ouvir um pouco de música para alinhar os pensamentos com o sublime, o transcendental, enquanto ainda era possível.

Buscou o cd. Ligou o aparelho. Sentou-se relaxado tomando um tempo para si mesmo e deixou-se embalar pelos acordes que possivelmente poderiam ser proibidos  dalí a alguns dias, como já proibiam a manifestação de pensamentos contrários ao pensamento coletivista.  



Quando ouviu as palmas, enxugou as lágrimas. Cochilou...

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