quinta-feira, 5 de maio de 2011

VERDADE DÓI

Por Arlindo Montenegro

Quando encaram verdades, algumas pessoas exultam, como se encontrassem a luz que mostra o terreno onde estamos pisando. Outras reagem, ignoram, dissimulam, interpretam. E tem sido assim mesmo: as pessoas são levadas por veredas desconhecidas, como se vivessem na escuridão, tateando para apoiar-se n’algum objeto, buscando bengalas.

Neste ponto da história da raça humana sobre a terra, muitas certezas e convicções que alumiavam o caminho dos mais informados, caem por terra. Os novos estão presos à hierarquia de compartimentos tão limitados, que a mesma mente se vai danificando a tal ponto, que a gente parece nem sentir a falta do alimento espiritual.

Deambulamos iguais e diferentes, reconhecidos apenas pelo local que cada um ocupa no espaço, pela roupa que veste, pelo estranho ou agressivo, sério ou cínico, honesto ou ladrão. À distância, na multidão, nos limites de cada rebanho “classista” todos parecem iguais, apenas um coletivo.

E os coletivos são tão estreitos que o saber, o conhecimento, a iniciativa, a liderança que destacava a gente parece ter sumido, substituída por técnicas simples, treinamentos expeditos para repetir comportamentos e palavras de ordem, seguir manuais e buscar promoções reservadas aos militantes e puxa sacos.

Enrolado, divagando, recebi um presente do amigo Piá, cuja cara nem sei se é quadrada, redonda ou hexagonal, mas o espírito aparece nos escritos que chegam com muitos ensinamentos, daqueles que matam a sede e confortam  atribulações mentais, arrumando prateleiras bagunçadas. O presente, um velho livro escrito em 1884, há 124 anos por um professor inglês, Edwin Abbot: “Flatland. A romance of many dimensions”.

Foi lendo e lembrando que somente quase meio século depois, seria grafada a obra de Orwell e de Huxley, profetizando os destinos da humanidade. “Flatland” que ouso traduzir como “terra insípida”, fala do achatamento e planura, como se a gente fosse um monte de figuras geométricas “achatadas” no plano de uma folha de papel. O professor Abbot foi um matemático, estudioso de Shakespeare e utilizou os conceitos geométricos para construir uma sátira imortal à burocracia aristocrática vitoriana.

Neste formidável achado intelectual encontram-se reflexões bem apropriadas para a atualidade: “cumpre-se a lei universal quando a sabedoria do homem acredita que está fazendo uma coisa e a sabedoria da Natureza o leva a fazer outra coisa, completamente distinta e muito melhor”. Como estamos aprendendo a desprezar a Natureza e até legislar para ativar armas que provocam terremotos e maremotos, aprendendo a agredir a Natureza, nos afastamos das Leis Universais. Dói, mas passa.

Apesar da tirania atemporal a que está submetido, apesar das guerra, fuzilamentos, bombas, campos de concentração, extermínios por fome, sede, artefatos biológicos... fogueiras, mísseis, enfermidades, tragédias... este bicho parece não envelhecer. Parece estar estigmatizado para uma missão fascinante, desafiando tudo em busca de sua essência espiritual, fonte de resistência e afirmação transcendental.

Segundo Abbot, “nas idéias gerais adotadas pelos historiadores...os destinos das mulheres e das massas humanas não merecem a menção e consideração detalhada. O personagem conclui então, após uma revelação em sonho, que sua missão é evangelizar as massa. No instante em que está pensando como começar, ouve um arauto lendo um edital que proíbe e pune com a prisão quem manifeste “revelações”.

Mas é preciso começar. “Até as mulheres e os soldados deveriam conhecer o “evangelho”. Começar pelos filhos é impossível, já que os mesmos médicos, em boa situação, são patriotas e respeitam os “círculos”  (poderosos) “por mero aspecto de cegueira”. Resolve começar pelo neto, uma criança que receberá a mensagem como lição. O menino sai correndo e rindo da brincadeira do vô.

“Todas as verdades substanciais (da nação) parecem ser produto de imaginação doentia ou a trilha irreal de um sonho”. Já preso, o personagem conclui suas memórias escritas: “Vivo com a esperança de que estas memórias, não sei como, possam chegar ao pensamento dos humanos em alguma dimensão e provocar o aparecimento de uma raça rebelde que reaja à vida confinada em dimensões limitadas.” Partidos, classes sociais, ignorância, obscurantismo...

É vai ser preciso muito trabalho. A verdade só dói quando o espírito está debilitado, adormecido. E é o espírito a maior arma de reação para vencer a tirania a que estamos submetidos.


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