À minha Amiga Lua.
Chega uma idade cronológica, variável, acima dos 60 ou 70, em que a gente parece já ter visto e ouvido tudo, experimentado de todos os sabores, exceto aqueles considerados asquerosos, por razões diversas. A idade em que a gente parece ter sentido todas as mágoas sem sentido, aquelas que são decorrentes de relacionamentos normais, correntes e humanos, previsíveis ou não, mas sempre presentes, diga-o a literatura universal.
As tolerâncias e intolerâncias se cristalizam e podemos, olimpicamente, dizer diretamente o que pensamos, declarar amores e objeções, saborear mingau de aveia e afagar bichos sem temor a mordidas. As agressões persistentes são sempre atos humanos, irracionais, desta raça nobre hábil na comunicação, no sentido da página das escrituras que discorrem sobre a torre de Babel.
Chega um dia em que a gente pode contemplar, como vendo um filme antigo, revivendo algumas emoções similares, o conflito entre pessoas próximas ou distantes, sem o desejo de intervir, tipo juiz ou conselheiro. Chega a hora de aposentar aquele ser interior arrogante, que simula saber o que é melhor para os outros e para cada um. Esta tendência que parecia incontrolável de julgar os atos alheios, brilha como escudo de proteção dos próprios medos.
O mais novo da família está logo ali. Brinca com um jogo eletrônico que ativa seus reflexos, amplia a visão periférica e exercita o julgamento rápido de situações, que ultrapassa à medida que mata mais personagens no seu caminho. É bem assim que se resume a história da humanidade: resiste quem mata mais. Mortes físicas, crimes continuados contra o físico, contra o espírito, contra os direitos jurídicos, extermínio de mentes e possitilidades.
Uma sucessão indigesta e repetitiva. E no entanto, a beleza e o amor resiste. Estes sentimentos singelos parecem ser os únicos dignos de atenção. Já pensou? Sinais de beleza até nas coisas mais grotescas ou a manifestação da essência contemplativa? No mais é mesmo a beleza desta teimosia que é a vida tão presente e plena de energia, perpassando todas as formas, mesmo as que parecem estáticas, a mesma energia que move outras formas nesta passagem.
Chega um momento em que cessa o impulso para estes jogos humanos e a visão revela que os mesmos filhos disputam não sei que, reproduzindo no recôndito do lar, as disputas do espaço exterior onde cada um parece mais ansioso para ocupar o espaço de poder, de controle das situações, jogando contra a mesma natureza e seu eterno movimento. Quanta pretensão!
Este é o meu momento de poder, enquanto o gato se aninha sobre a mesa ao lado do copo de cristal, único exemplar de uma coleção que serviu aos brindes de tantas pessoas risonhas e crentes em deuses e ideologias diferentes, sem ao menos ouvir a voz do Deus interior, desafiando valores universais permanentes, inconsciente da própria capacidade, da propria missão humana percebida apenas como possibilidade remota e inalcançável.
Melhor juntar-se à tribo e sair dançando, correndo em busca de novas conquistas, sem ao menos pensar em conquistar a paz interior. É o que fazem todos que vivem seu momento. Este é o meu momento de descansar à sombra vigorosa da árvore da paz interior. Deitar-se apreciando as luzes brincando com o vento entre as folhas da copa onde as memórias estão descritas.
Lá ao longe, por onde passei, a gente continua embevecida falando línguas diferentes, usando trajes negros ou coloridos, ouvindo as últimas notícias sennnsaacionaaaiss!! Os mesmos discursos, os mesmos apelos religiosos que conduzem à salvação, seguindo as mesmas diretrizes, multiplicando os mesmos ritos no amor e na guerra. Sem tempo para conhecer o mundo interior.
Olho as folhas que guardam as imagens de rostos e sons de vozes gentís, tanta gente, tantos nomes sonoros ou soturnos, tantas idéias e ideais bondosos e vem à recordação do mundo que se desenhava, do que poderia vir a ser, mas foi impedido quando brotava. As mortes, as guerras, a separação da família, os rigores do frio e do calor extremo, as paixões, a vida em si, desenhou caprichosamente e espalhou enigmas pelo caminho, mudando a direção.
Nada a reparar. Nenhuma culpa pelos crimes cometidos no caminho da sobrevivência. Apenas as marcas, algumas bem profundas, como ficam dos golpes de machado no tronco que resistiu. Igual e diferente de outras marcas que cada pessoa vai juntando vida afora. Todas cicratizadas, algumas ainda guardando a memória da dor. Como a memória das chuvas, ventos, geadas e as floradas quando o sol expunha a vida afirmativa.
Chega o momento de olhar docemente para os olhos das pessoas, sabendo que vão cruzar caminhos que já conhecemos, vão repetir gestos e palavras, vão estender a mão, acariciar, espancar, empunhar armas físicas e mentais. Vão conhecer o gosto e o grito das emoções de odio e amor. Vão praticar ou desprezar a caridade. Vão viver com mais medo paralizante ou mais ação construtiva-destrutiva. Vão louvar ou vão fingir veneração a um Deus. Vão rir, chorar, dançar e dormir. Um dia, dormir sem acordar para a vida que segue.
Arlindo, meu caro amigo,
ResponderExcluirPoucos saberiam saborear o momento que você descreve e que me deixou com lágrimas escorrendo, pois assim me sinto, mas não sei expressar-me.Parece que me vi a seu lado, com o gato e a última taça de cristal. Possuo um copo que foi de meu pai, com seu nome gravado e, junto com minhas meninas aninhadas a meus pés, no silêncio onde nem a Amiga Lua aparece, preparo-me para mais uma noite de sono, sem saber se vou acordar com tanto sentimento.