No alto da Colina onde o sol, de manhãzinha, emergia do mar, lá longe, primeiro pintando o ceu de ouro e laranja e pouco a pouco, depois de um grande bocejo, aparecendo, imensa bola de fogo iluminando mais um dia da vida. Aos nove anos, o menino ficava ali sentado na escadaria da igreja, olhando aquele mistério, o sol saindo da água! Ao lado o carrinho de mão com os recipientes de latão, com um ou dois litros de leite para entregar, primeiro na casa do poeta.
Aquela pracinha era privilegiada: além da igreja, do cinema e da casa do poeta, havia o casarão dos artistas, onde a cada mês havia uma reunião dominical para um concerto de piano, somente para convidados. Numa esquina da praça calçada com paralelepípedos, começava a estrada de terra que levava aos sítios e naquele vizinho ao que morava, estava a escola particular da Professora Bernadete.
Era sorte mesmo, porque todo santo dia tinha de levantar com os olhos colados pelo mingau das almas e correr para o curral onde o pai, com ajuda de Carlinhos que cuidava de tudo no sítio, já estavam ordenhando as vacas e distribuindo o leite nos pequenos latões. A obrigação do menino era alinhar os recipientes no carrinho de mão e sair distribuindo nas casas vizinhas e alí na pracinha, que começava a 100 metros da entrada do sítio. Tubarão, inteligente pra cachorro, já sabia tudo de cor e corria na frente, acompanhando o roteiro matinal, verificando tudo.
Na volta, ele ganhava uma tijela de leite, enquanto o menino tomava banho e dava uma repassada nos cadernos, antes de tomar o café da manhã, pedir a benção de mãe e pai e sair apostando carreira com o cachorro por baixo das mangueiras, até a cerca limite do sitio da escola. Suspendia o arame, passava com cuidado pra não se enganchar e pronto: estava no pátio, onde Tubarão já brincava com a turma que esperava tocar o sino de chamada para as aulas.
Para aquela sexta feira estava marcada uma prova de composição e o menino e a menina que obtivessem as melhores notas, ganhariam um presente surpresa. Olhou o caderno aberto diante de si, as linhas azuis esperando para guiar um texto bem arrumado. Olhou pela janela e viu Tubarão deitado na relva embaixo da mangueira coçando as pulgas. Foi ele o tema da redação, "Meu amigo cachorro!"
Foi só descrever um dia na companhia de Tubarão, o jeito que ele era obediente e como brincava, sem reclamar de nada, limpando a tijela de comida. Escreveu tudo como se estivesse conversando com o cchorro, sobre as pessoas das quais ele se afastava quando não gostava por causa do cheiro ou se aproximava pelo jeito de olhar e se agachar para falar com ele. Terminou dizendo que cachorro tinha muito de gente, prá não ser indelicado dizendo que era mais inteligente que muita gente.
Cada um teve de ler seu trabalho, de pé, lá na frente. A leitura do "Meu Amigo Cachorro" foi interrompida com muita gargalhada e a turma ficou futucando o menino – você ganhou! - Enquanto a professora Bernardete fazia a correção ortográfica, a classe quebrava a cabeça com exercícios de aritimética e Tubarão continuava no bem bom, sem ligar para as galinhas que ciscavam ali perto.
Depois do recreio, o resultado. O presente das meninas foi para Aninha: um estojo de lápis de pintura. Com o amigo cachorro o menino ganhou um convite especial para assistir um concerto de piano na casa dos artistas, bem no dia em que estaria presente uma cantora lírica. Prá que? Bom, já era muito desconfortável ter de calçar meias e sapatos, vestir roupa engomada num tarde calorenta. Mesmo assim estava curioso e saiu com o cabelo grudado de brilhantina, que a mãe penteou com cuidado.
Tubarão também estava banhado e escovado naquele dia e acompanhou o menino como que protegendo. Chegaram á casa dos artistas. O menino entrou, entregou o convite ali na varanda coberta de trepadeiras. Tubarão acomodou-se no gramado, debaixo de uma roseira. No salão, o menino foi apresentado a pessoas desconhecidas pelo poeta, que era amigo do pai.
Conversa vai conversa vem, os adultos quereiam saber de suas leituras, jogos, preferências, num inquisitório sem fim. - Você gosta mais de ler ou de cinema? - Gostava mais de ler. Cinema foi poucas vezes. E teatro? Não... nunca tinha visto peças teatrais, somente "Os Meninos Cantores de Viena", numa apresentação da Cultura Artística... gostou muito. Acomodaram-se todos, como obedecendo um sinal.
O piano preto e brilhante esperava a artista. Chegou a mesma filha da dona da casa, dona Gertrudes, uma magrela mais branca que leite, vestida até os pés e com uma flor no cabelo. Sentou-se ao piano e foi o milagre! Como é que podiam os dez dedos de uma pessoa cobrir todo o espaço, todos os sentidos, com tantos acordes que despertavam todo tipo de sentimentos. Foi muito aplaudida! Embora suando muito o menino estava hipnotisado esperando a segunda parte.
A pianista que a seus olhos então parecia uma fada, voltou acompanhada de uma gorducha. Do piano se fez ouvir uma introdução e a gordinha começou a cantar suavemente, numa lingua desconhecida, enrolada mesmo. De repente, a interpretação enveredou por uma serie de trinados, que a moça parecia uma araponga bem afinada, com a goela vibrando que era de doer os ouvidos.
E doeu mesmo, nos ouvidos de Tubarão, que lá do jardim começou a uivar desesperado, acompanhando, competindo com a gordinha e incomodando uns enquanto outros dos presentes sorriam. Terminada a apresentação, o menino foi agradecer e despedir-se de dona Gertrudes, que perguntou – Gostou? - Gostei muito. - Pois bem, da próxima vez deixe seu cachorro em casa.
Quem tem um amigo cachorro, emociona-se com a leitura. Emociona-se com o menino que, aposto, jamais deixou seu amigo em casa!
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