terça-feira, 14 de dezembro de 2010

MEMÓRIA AFETIVA

Por Arlindo Montenegro

...quando a cumieira foi instalada, a roça já produzia o suficiente para o de comer e sobrava para ajudar um ou outro vizinho desprevenido, sem prejudicar o que se juntava durante a semana, para levar à feira dominical do povoado. A casa tinha as paredes lisas e brancas, pintadas de cal. O fogão de lenha estava pronto e as panelas de argila arrumadas numa prateleira baixa. Uma mesa grande, ladeada por dois bancos compridos e alguns menores, completava o mobiliário.

Aquele era o maior dos cômodos. Alí se preparavam e serviam as refeições e se trocavam as idéias. Seria também o lugar onde mais tarde os filhos aprenderiam as primeiras letras. O mundo se complicava e era preciso aprender mais coisas, estar mais informado para relacionar-se com as pessoas, para negociar e quem sabe até para viajar. Emfim a missão dos pais era entregar o bastão de uma vida melhorada para os filhos.

Geração após geração a vida se enriquecia, as comodidades aumentavam. Um dia, Américo arreou os burros, arrumou a carga de vasos e panelas de argila que Zefinha produzira com capricho, ergueu o caçuá com as pencas de banana, mangas docinhas e laranjas. No terceiro burro estavam os sacos com feijão, farinha de mandioca e beijús de côco. Quando chegou à feira, cumprimentando a todos que encontrava, soube da novidade: estorou a guerra!

No primeiro instante aquilo tinha pouco significado para ele. Logo soube que a matança acontecia distante, muito longe mesmo, num lugar que estava além do mar imenso. Aquela novidade rendeu conversa. No fim da tarde, voltando prá casa, os burros sem a carga que parecia pesar em sua cabeça, mercadorias intangíveis, nomes desconhecidos, curiosos, como Europa, "Rítle", democracia, tropa (que até então ele conhecia com referência a burros) que soldado era batalhão...

Entregou a rede nova a Zefinha com um sorriso e foi logo contando as novidades, como se fosse o serviço de alto falantes da igreja transmitindo sermão do padre. Ela ouvia alisando a barriga onde carregava o filho, pensando talvez, meu filho não vou deixar ir se matar... o mundo vai melhorar prá ele. Serviu as ostras no leite de coco, feijão, farinha e pimenta, o prato preferido do marido, que de barriga cheia, fez o sinal da cruz e se afastou com a peixeira curta na mão.

Enquanto limpava os pratos e panelas, ela pensava naquela coisa de guerra, coisa do capeta, so podia ser. Onde já se viu? Pensava que o povo já tinha juizo suficiente para conversar em vez de se matar. Sentou-se no banquinho da varanda e esperou, sabendo que Américo ia trazer uma laranja descascada pra ela. Depois ia pendurar a casca comprida no beiral para secar. Servia para acender o fogo.

Sentados lado a lado ficavam alí um tempo, ouvindo os passarinhos, identificando os cheiros que o vento trazia e contemplando o verde dos manguezais que bordeavam o rio, lá embaixo. Sorviam o momento de descanso, planejavam as tarefas do dia seguinte, sorriam de alguma história e ao cair da noite recolhiam-se para o repouso merecido.

Na semana seguinte, Zequinha voltou com uma ruga na testa: Getulio ia mandar soldados para a guerra. Falavam até de armas novas, submarinos que andavam escondidos por baixo d'água do mar e de repente soltavam bombas nos navios que flutuavam lá em cima. Cada semana as notícias eram mais ricas em detalhes e aquilo durou cinco anos. Por fim a democracia estava salva. E Francisquinho que crescia parrudo, em mais dois anos iria para a escola saber o que era aquilo.

Francisco cresceu, foi soldado, cabo e sargento. Depois deu baixa, plantou uma roça de fumo e começou a fazer charuto e fumo de rolo que vendia nas bodegas. Também gostava de uma cachacinha e farra. Ouviu falar de democracia e comunismo, mas seu interesse era pelos rabos de saia. Casou, teve filhos e foi pai amoroso, cuidando que todos tivessem educação. Fez das tripas coração e formou um filho padre. Um moço destacado e severo, Padre João foi prá Roma e voltou trazendo uma benção do Papa para a família, e uns terços bentos de presente para a vó, mãe e tias.

Acabo de chegar do velório do Padre João. Foi ele quem me ensinou que estes nomes todos, que rotulam formas de estado, instituições, ideologias, partidos, políticas de esquerda ou direita ou centro, eram apenas iscas prá engabelar e escravizar a mente dos que se afastavam da vida em sua plenitude, dos que perdiam o amor por si mesmos e assim eram incapazes de amar aos outros semelhantes.

Um dia lembro, conduzia o Padre João naquele carro novo que era meu xodó, quando ele largou um balde d'água na fervura do meu entusiasmo: "Vocé já pensou como as pessoas estão sendo adestradas para "amar" carros, motos, artistas de tv, modelos de roupas e já não cabe lugar na cabeça prá pensar em outra coisa, que manter o emprego para pagar o que já comprou e descartou?"

É preciso ensinar a moçada a pensar, romper o isolamento do grupo, ultrapassar a estupidez coletiva. Apaixonar-se pelo saber que preenche o cérebro e vem de uma fonte inesgotável que alguns identificam como Deus, apenas para nomear uma inteligência infinita, cuja compreensão está fora do alcance humano.






Um comentário:

  1. Arlindo, isto é um poema de amkor às suas raízes, ao seu passado. Quem me passou o bastão foi meu avô materno e a casa me fez lembrar a de Petrópolis, também com fogão de lenha, meu jumento Barão, as galinhas soltas e eu, pequenina jogando mihos (achava que n~]ao eram bem alimentadas). Quanto à guerra, o sobrinho de uma empregada de meu avô foi pracinha e, na minha memória afetiva, eu me vejo ajoelhada numa cadeira de madeira olhando para as mangueiras da Embaixada da China, ao lado da casa de meu avô me pedindo: Jesus, faça com que o Antonio volte são e salvo, proteja nossos soldados. Na realidade, vivo dessas memórias que me fazem continuar até quando Deus quiser. Um abraço enorme!

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